Mais um ano, mais um domingo cercado pela prole, presentes, flores e palavras carinhosas!
As acusações de mãe coruja e superprotetora sempre me pareceram exageradas. Meus filhos sempre se destacaram pela beleza - eram chamados de bebês Johnson - pela inteligência e personalidade. Não é porque são meus, ou que os veja com uma lente distorcida, mas as crianças adoráveis se tornaram pessoas amáveis; ao contrário de hoje que crianças terríveis se transformam em adultos insuportáveis.

Ele chamava a atenção desde pequeno por seu jeito e charme. Um rapaz de fina estampa, como diziam os antigos da cidade do interior onde morava. Era chamado de Tony Kodak. O apelido se dava ao fato de sempre ficar bem na foto, independente do traje, posição, expressão e por ser sempre possuidor de um sorriso largo e cativante, capaz de seduzir até poste, como dizia sua amada Tia Neusa.

Amanhã completo cem anos! Repito para me convencer: cem anos, um século, trinta e seis mil e quinhentos dias, sem filhos, descendentes, poucos parentes, a maioria enterrei, assim como os raros amigos que tive.

Fiquei feliz ao receber sua carta. Nesse futuro que chegou: cheio de nuvens e incertezas, essa mensagem do passado é um convite a lembrar de quem realmente sou, do quanto já sonhei e do quanto caminhei.

Após chegar a esse planeta caótico, contrariando probabilidades - o cordão umbilical laçava o meu pescoço - levei a primeira palmada na vida (e da vida), chorei, berrei e anunciei que não me conformaria apenas com receitas testadas, pratos feitos nem com a falta de sobremesa. Sempre apreciei a doçura! 

Ele sempre desconfiou das grandes certezas, das inquestionáveis verdades, da superioridade moral e de tudo que significasse mais fé e menos reflexão. Deixar de lado sua capacidade de pensar e sua intuição, em nome de promessas de vida eterna, salvação ou de estabilidade de emprego, nunca o atraiu. Nas poucas vezes que se deixou levar, o arrependimento veio rápido e trouxe o ônus adicional de ter se enganado, traído a sua mais profunda essência.

Abandonei tudo e parti para o Chile. Os amigos do seminários, e sua rede de contatos, descobriram que Consuelo havia sido mandada para um colégio católico em Santiago. Encontrei o Colégio Vila Maria e fui diretamente do aeroporto, depois de uma longa espera através da imigração, devido a uma greve de funcionários públicos. 

Caminhou em direção ao palco improvisado, subiu três degraus lentamente, respirou fundo, posicionou o microfone. Ao seu lado, o assistente contratado pelo dono da churrascaria, João do Órgão, bioquímico desempregado, ajustava um velho teclado yamaha, adquirido de uma igreja evangélica. 

Fabiana entrou no minúsculo apartamento de 49 metros quadrados, mas sua alegria era do tamanho do mundo. Sua mudança consistia de algumas malas, uma cama, uma geladeira e dois quadros. A cama de casal ocupou quase todo o espaço do quarto. Apesar de se intitular arquiteta autodidata, a desproporção não a incomodava. Aquela cama era fundamental pois queria flutuar pelas noites, sem obstáculos e sem presenças. 

Há coisas possíveis disfarçadas de impossíveis. Essas podem vir a se tornar futuros milagres! Sonhos de visionários com foco e capacidade de execução, que viram histórias de sucesso. Encontros fortuitos que viram histórias de amor devido à persistência de uma das partes que, vendo e sentindo o que a outra ainda não percebeu, inicia a caminhada solitária, saltando obstáculos com a certeza (e a inocência) dos apaixonados.

O maquinista avistou o fim do caminho, o precipício desvendado pela ausência da ponte. Tentou parar o trem mas o esforço parecia inútil, a angústia do desastre inevitável tomou conta de seu copo e ele pensou em todos que amava, tudo que deixaria para trás e da memória que se tornaria. 

Há meses ele acreditava que estava em mais uma dança de idas e vindas que se repetia. Estava enganado! Enquanto ensaiava os mesmos passos, ela continuava seu inexorável caminho para fora e para longe.

Alice procurou ser tudo que sua mãe sonhava para ela: independente, livre, viajante, pioneira. Quatro décadas e meia depois tinha conseguido tudo, mas agora, sobre o que havia construído, estava uma mulher dividida e cansada. A dura caminhada solitária até aquele ponto havia cobrado um alto preço.

Vitória acordou com frio, muito frio apesar de ser uma noite de verão amena. Cobriu-se rapidamente e começou a pensar; aos poucos se lembrava do sonho : estava em uma escola, num lugar muito frio, só havia mulheres, ela no meio delas, andava em círculos e uma voz professoral falava de tudo que acontecia no planeta e o que precisava ser feito.

Era uma sexta-feira chuvosa e fria, daquelas que fazem a gente refletir sobre as incoveniências da solidão e da importância de um outro corpo aquecido dividindo o sofá, mesmo que não existam palavras, apenas aquele olhar que conforta, acompanha e faz o mundo um lugar menor e melhor.

Ele achava que não havia mais tempo, nem paciência, nem fé. Sem os ingredientes necessários, como recomeçar, como tentar novamente? Ele se perguntava como quebrar aquela inércia que nos abate e torna o mundo uma caixa sem surpresas, tão previsível como programas dominicais de TV, que nos anestesiam a existência.

Esse medo de chegar mais perto

quando perto se está

deixa tudo tão devagar

faz perder o ponto

a vida virar mero conto.

Estavam todos ali reunidos em volta da mesa, vinte e seis pessoas, quatro gerações e tantas memórias. As crianças das fotografias antigas traziam agora suas próprias crianças, algumas correndo, algumas nos ventres de mães orgulhosas, algumas em colos, que aqueciam como aquele ambiente familiarmente acolhedor.

Já havia algum tempo que o relacionamento havia acabado e João Pedro ainda passava lentamente pelas cinco fases da perda e luto: negação e isolamento,raiva, barganha, depressão e aceitação. Às vezes se perdia e, feito jogo de video game, não conseguia mudar de estágio, mas algo se modificava; ele voltou a perceber a vida de uma forma diferente. Voltou inclusive a correr, seu esporte predileto.

Os Sherpas são um povo que vive no Nepal na região do Himalaia. Eles conhecem a região montanhosa há gerações e são contratados por expedições de montanhistas como guias e para carregar as provisões necessárias : alimentos, barracas e todo material de suporte. Eles tem grande resistência à altitude e carregam cargas muito pesadas.

Há dois tipos de sobreviventes: o resiliente e o desesperado. Aparentemente são iguais mas existem profundas diferenças. O sobrevivente resiliente foi criado em um ambiente estruturado, com contornos. Ele aprendeu desde cedo que é necessário superar as adversidades, mas há limites, há opções que devem levar em consideração valores e princípios. O sobrevivente desesperado prega valores e ética mas sofre metamorfoses a medida que as necessidades se impõem. Seu caráter é fluido, ao contrário do sobrevivente resiliente, cujo caráter vai se moldando pelas escolhas que reforçam e distinguem o certo do errado, o bem do mal.

Ousar ?

Lucas chegou em casa após percorrer o mesmo percurso que fazia há vinte e cinco anos, três meses e quatro dias. Sabia exatamente, porque registrava todos os insignificantes eventos da sua vida em um diário

No jogo da vida

No jogo da vida

No meio da partida

Ainda atento

À direção e ao vento

Tão longo amor

Os dois amigos se encontraram no cemitério mais uma vez.

- Sabia que você estaria aqui.

- E eu que você viria.

- E lá se vão cinco anos.

- Parecem vinte.

- A dor faz o tempo ter preguiça.

Medo

- E aí, amiga? Foi tudo bem?

- O jantar foi maravilhoso. O restaurante era muito chique e a comida deliciosa.

- E ele pagou a conta?

- Claro. Um cavalheiro.

- Espécie em extinção.

O caminho

Violeta e Antonio se conheceram por acaso em um congresso esotérico. Ela foi levada ao evento por uma amiga psicóloga, ele,lá chegou porque desceu no ponto de ônibus errado. Ela tinha pouco mais de trinta anos, ele, vinte e seis. A serenidade, equilíbrio e bom senso que nela sobravam, faltavam nele.

Pressa

Eliane vivia sempre com pressa, sensação constante de estar atrasada, ou devendo algo a si ou aos outros. Ela estava sempre fazendo alguma coisa, procurando se antecipar, prever, evitar riscos, só esquecia de viver.

Fatos e atos

Claudete amanheceu se sentindo estranha. Era um daqueles dias! Parecia que sua vida estava sendo vivida como um conjunto desconectado de fatos e atos.Ela tinha dificuldade de separar as causas dos efeitos, por não mais saber onde começavam umas e onde terminavam as outras. A única coisa que estava clara é que nada parecia fazer sentido e os seus sentidos alternavam períodos de alta atividade com uma certa dormência.

Em algum lugar do sertão baiano

- Nairzinha, por que tu tá assim de calundu?

- Repare, minha mãe, eu tenho muitos motivos pra está triste e com raiva.

- Minha filha, ficar retada assim é perda de tempo, porque no final…

- No final o quê?

- No final tudo acaba.

Templo de memórias

Era a primeira vez que Maria Tereza entrava naquele casarão desde que seu pai falecera.

Os ambientes vazios pareciam estranhos, apesar das sensações, imagens e emoções que despertavam. Não podia ser diferente, ali ela viveu vinte e três anos e, depois que partiu, era o porto seguro para onde sempre retornava.

Cartas de amor VI

Minha Cara Helena,

Saí pelo mundo me procurando e vim para longe, muito longe.

Aqui na Patagônia, castigado por esse vento frio que penetra na pele, chega na alma e revela emoções escamoteadas pelo tempo e pelas defesas, olho para o céu e as estrelas abundantes formam uma obra de arte. Vejo cristais em um fundo negro e infinito.

Contradições

Acordada no meio da noite, Madalena olhava para seu namorado que dormia tranquilamente. Estavam juntos há oito meses. Ele era companheiro, educado, inteligente, gostava de crianças, não se incomodava com DR’s. Ela detestava admitir mas não havia outro adjetivo que substituisse aquele… ele era bonzinho! Suas amigas e seus pais gostavam dele, ela gostava dele também mas havia algo estranho, sentia falta do antecessor, dele mesmo…o cafajeste!

Vida de cão

Todo  ano quando chegava o inverno, Patrícia se perguntava porque ainda estava só. Ela era inteligente, relativamente bem sucedida, bonita, ótima forma física, independente, tinha orgulho do seu caráter e da sua integridade. 

DEMONTRON

Arthur Sandeman foi um grande cientista e inventor, seu grande legado para a humanidade foi o DEMONTRON, um aparelho através do qual era possível  revelar todas as loucuras de cada ser humano. 

Para se salvar

Maria Auxiliadora acreditava ser vítima do próprio nome, uma maldição imposta pela mãe, crente fervorosa, frustrada por não ter seguido a carreira religiosa e insatisfeita com a vida que escolheu.
 

Encontro em uma terra distante

Navegando na internet encontrou uma paisagem que chamou sua atenção. Uma planície imensa cercada de montanhas com picos nevados e um lago que refletia o céu. No meio daquele cenário que parecia uma pintura, uma construção se destacava pela simplicidade e beleza.

Hein ?

Genésio começava a perceber que estava envelhecendo. Os sinais ficavam mais claros a cada dia: a lista de suplementos alimentares no café da manhã que cobria todo o alfabeto, os horários das refeições, cada vez mais cedo e não sujeitos a mudanças, a intolerância refletida no sarcasmo e até hábitos que beiravam a manias. 

nfeliz à sua maneira

Lyra recebeu a ligação do seu agente literário. Atendeu angustiado pois estava atrasado, muito atrasado com a entrega do livro.

- E aí, terminando o livro?

- Bom dia, caro agente sanguessuga.

- Você sabe que me preocupo com sua carreira.

- Sei, como sei. Preocupação percentual, digamos assim.

- Está sendo injusto.

Diálogos da separação III

Ela: Quando você fica com essa cara de nu com a mão no bolso, está querendo dizer algo.

Ele: Pensei, pensei…

Ela: Xiiii, homem quando pensa muito é mau sinal.

Ele: Deixe-me falar.

Ela: Diga.

Ele: Acho que não estou pronto para assumir uma relação, um compromisso.

Ela: Morando juntos há dois anos, me dizer isso agora?

Trincheiras

Sentado na varanda, devorando um romance histórico ambientado na Primeira Guerra Mundial, Jomar se inquietou ao lembrar que há longos sete dias, oito horas e vinte minutos não falava com Silvia.

Lígia estava casada há 20 anos, tinha dois filhos,uma vida estável. Causava surpresa como, após duas décadas, o marido ainda a tratava com tanta deferência e cuidado. Na verdade era um cuidado que cheirava a controle. Ligava demais e exigia sua presença. As ligações excessivas e as perguntavas intermináveis a cansavam cada vez mais.

De onde vem a inspiração?

Caio Norton se tornou um escritor de sucesso mundial. Seus cincos livros, uma saga de romance e ação na França ocupada durante a Segunda Guerra Mundial. As histórias de espiões ingleses e americanos, combatentes da Resistência Francesa e oficiais da Gestapo prendiam a atenção dos leitores. No meio da tensão e suspense sempre havia espaço para histórias de amor inusitadas. Chamava a atenção a riqueza de detalhes históricos que transportavam os leitores para cada cenário cuidadosamente construído, transportando-os para algum lugar no interior da França entre 1939 e 1945.

Juvêncio se considerava um autodidata. Havia aprendido muito com os livros de psicologia, conversando com padres, pastores ,psicólogos, psiquiatras e visitado manicômios. Tinha grande conhecimento da alma humana, seus vícios, desejos e contradições. Os sessenta anos de vida e tudo que havia presenciado e ouvido falar, era suficiente para não mais se surpreender com o que os humanos pudessem criar.