Templo de memórias
Era a primeira vez que Maria Tereza entrava naquele casarão desde que seu pai falecera.
Os ambientes vazios pareciam estranhos, apesar das sensações, imagens e emoções que despertavam. Não podia ser diferente, ali ela viveu vinte e três anos e, depois que partiu, era o porto seguro para onde sempre retornava.
Caminhou lentamente ouvindo o barulho do piso de madeira antigo, tábuas longas e escuras, desgastadas pelos passos do tempo. Atravessou todo o piso térreo, se dirigindo aos fundos da casa onde o quintal dividia o espaço com a biblioteca do seu pai. Com ele aprendeu a gostar de literatura, de livros, de descobrir outros mundos e das inúmeras outras vidas que poderia viver.
Abriu a porta e a imagem das enormes estantes repletas de livros, cuidadosamente organizados, foi forte e marcante. Ficou um pouco tonta com a emoção, sentou no chão e começou a chorar ao lembrar do pai, sentado na poltrona de couro, cercado por seus tesouros e onde parecia estar inteiro e feliz.
Antes da casa ser colocada à venda , tudo nela foi distribuído entre os familiares ou simplesmente doado. Tudo com exceção do templo de memórias .
Maria Tereza resistiu o quanto pôde mas havia chegado a hora. A casa tinha que ser entregue aos novos donos e ela precisava decidir o que fazer.
Após um longo choro, levantou-se e começou a visitar as prateleiras, com etiquetas que identificavam e organizavam os mais de três mil livros, tudo cuidadosamente feito. Ela sorriu ao rever a placa amarelada que dizia: NÃO EMPRESTO MEUS LIVROS! O pai que era capaz de gestos generosos, tinha ciumes dos seus livros e não os dava, nem emprestava.
Ao passar pela seção de clássicos russos, lembrou o quanto ele se empolgava ao falar de Dostoyevsky e da primeira vez que ela se sentiu segura o suficiente, para discutir com ele sobre um livro - Os Irmãos Karamazov. A medida que expressava suas opiniões e percepções, o pai a questionava mas não conseguia esconder o orgulho típico do criador que admira a criatura.
O tempo passou rápido como a leitura de um livro bom. A noite chegou e Maria Tereza tinha que ir embora. Ao fechar a porta a despedida estava completa. Talvez aquela visita fosse o rito de passagem que ela necessitava.
No dia seguinte as decisões vieram facilmente. Os livros que mais tinham significado foram repartidos entre ela e o irmão, os restantes (e eram muitos) assim como as estantes, foram doados a uma escola municipal no interior, cuja diretora era sua prima.
Desde então, uma vez por ano ela visitava a escola e ali, na biblioteca transplantada, sentia a presença do pai, o que ajudava a, de alguma forma, matar as saudades.
Antonio Augusto