Sobre amores modernos

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A queda

Postado por Antonio Augusto em 19 Agosto
Enquanto se aprontava para a festa, Eva olhava no espelho e, de alguma forma, não se encontrava na imagem refletida. Havia algo estranho, uma certa desconexão entre o que via e o que sentia. Sentia-se assim sempre que estava com Henrique, o namorado.
Continuou a se preparar: primeiro os cabelos, depois a maquiagem, o vestido e por último os sapatos coach que se dera de presente no dia dos namorados. Na verdade, no dia 13 de junho, após descobrir na noite anterior que Henrique nada trouxera. A expressão de surpresa quando ele recebeu o presente foi substituída por um certo silêncio inexplicável. Até o último segundo ela esperava que ele tirasse um coelho da cartola, mas ele não era mágico.
Ela colocou os sapatos e se sentiu bonita, elegante. Saiu do quarto, andou pelo corredor como se desfilasse em uma passarela, parou no início da escada, olhou para baixo como se fosse uma Scarlet O'hara, deu o primeiro passo. Lá embaixo Henrique olhava para ela com uma certa indiferença irritante. Tentando não perder a concentração naquele momento cinematográfico, virou o rosto, deu mais um passo e se desequilibrou. Desceu rolando os 11 degraus.
Deitada e sentindo muita dor, meio tonta com a queda, levou um tempo para identificar aquele som alto. Sentou-se no chão, olhou para o lado e viu Henrique dando gargalhadas. Primeiro achou que tivesse batido a cabeça e que tinha alucinações, depois justificou para si mesma: o riso é uma atitude que demonstra nervosismo em situações extremas. 
Os segundos foram passando lentamente e ele não parava de dar gargalhadas. A cena era surreal: ela caída e machucada,sentindo dores terríveis, e o namorado olhando de cima, rindo, sem demonstrar um gesto de apoio.
Eva se levantou com dificuldade, apoiou-se no corrimão e foi segurando na parede até o lavabo. Entrou, fechou a porta e teve uma crise de choro. Sentia uma dor física profunda e uma tristeza dilacerante. Sentou-se no vaso e procurou se acalmar. Alguns instantes se passaram até que conseguisse se recompor. Abriu a torneira, lavou o rosto, esperou mais alguns instantes e saiu.
Henrique se aproximou e perguntou se estava tudo bem. Ela respondeu que sim mas que desistira de ir para a festa.
Subiu as escadas com dificuldade, foi para o quarto e se deitou. Começou a dialogar com o travesseiro. Travesseiros são confidentes irrepreensíveis, ouvem atentamente e tem uma bondade que comove e faz revelar ainda mais.
Enquanto se ouvia, Eva conseguia perceber o sentido e a realidade de um jeito que até então, só aparecia de forma sutil quando seus sensores apitavam.
O tombo e as gargalhadas fizeram com que tudo ficasse claro: esse foi mais um tombo, mais uma queda em que não houve qualquer solidariedade, ou empatia. O namorado achava engraçado seu infortúnio e sua dor. Ele era incapaz de um gesto, de ter cuidado com ela. Não retribuía atenção, carinho, gentilezas. Ele alegava esquecimento, mas atrás do problema de memória havia uma indisponibilidade de dar, de se doar.Foi assim também quando sua melhor amiga faleceu e ela não teve sequer um abraço, ou uma palavra que a confortasse. 
Eva levantou-se, desceu as escadas cuidadosamente, passou por Henrique e se dirigiu até a porta de saída. Ele perguntou o que estava acontecendo, para onde ela iria. Ela virou-se calmamente e respondeu: embora.
 
 
Antonio Augusto
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Sobre o Autor

Escritor

Antonio Augusto escreve sobre o que vê, sente, entende e aprende.

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