Budistamente
Sentado naquele café ele olhava para ela e não cansava de apreciar a cena: ela com
seu indefectível chapéu francês, blusa de algodão de mangas compridas, cachecol colorido
abraçado ao pescoço — com ele adorava ficar — e aquele sorriso que aquecia sua alma como
um chocolate quente em uma noite de inverno. Aquele mesmo sorriso que, no primeiro olhar,
havia despertado seu lado Zeca Baleiro: vou roubar essa mulher pra mim!
Ela falava com segurança sobre a necessidade de se desvencilhar das coisas materiais,
sobre a importância da busca espiritual, do desapego, do jeito budista de encarar a vida.
Ele se sentia pequeno, como um cristão que entrava pela primeira vez numa catedral
gótica, mas continuava a olhar pra ela e se perguntava por que abrir mão da forma que levava
ao conteúdo. Os chefs de cozinha sabem que a beleza de um prato incrementa o sabor. Talvez
esse negócio de desapego fosse coisa de quem nunca ouviu Mozart, nunca viu um pôr do sol
em Itaparica, andou pelas ruas de Paris na primavera ou amou de verdade.
— Forma e conteúdo podem e devem andar juntos — disse ele, interrompendo o
discurso cheio de razão e sensatez daquela mulher impulsiva, sensível, contraditoriamente
adorável e… “E o quê?” — pensou ele. Talvez ali estivesse a razão da conversão à doutrina
que dava sentido ao que ela vivia. Budistas não alegam que a vida é um caminho de
sofrimento e que a depuração vem com a aceitação da condição sofredora?
Ele olhou para ela com olhos abertos de quem ama e viu o cansaço, a dor, a
desesperança, a falta de sonhos, o choque de realidade, o cristal trincado. Interrompeu o
discurso e a beijou calma e profundamente.
— Eu estava falando.
— E eu te beijando.
— Você sempre faz isso quando não consegue argumentar.
— Eu sempre faço isso quando não é mais necessário argumentar.
— Gostei do beijo.
— E eu gosto tanto de você. E gosto do seu sorriso, do seu corpo, do seu cheiro, do
seu abraço. Seu corpo é a porta do caminho que me leva à sua alma e à minha própria.
— Mas sexo não é tudo.
— Contigo é tanto! É ritual, terno, mágico, é muito!
— Mas eu quero evitar os impulsos.
— Você pode evitar os impulsos, mas não os pulsos. E a vida pulsa em você.
— Eu sei, mas esses pulsos já me levaram à beira do precipício e a tanto sacrifício.
— Sacrifício também é budista!
— Você e seu senso de humor.
— Sorria, sorria! Tenho medo de você perder esse sorriso como perdeu o brilho nos
olhos.
— E é tão importante?
— Pra mim é vital.
— Como assim?
— É uma pequena felicidade. Faz bem pro meu coração e pro meu ego, tenho que
confessar, saber que fui responsável por ele. Nada budista isso!
— Você simplifica demais as coisas.
— Pois é… nós homens, seres inferiores na escala cósmica, somos verdadeiros iPods
bípedes, só temos PLAY, PAUSE e STOP.
— E nós mulheres?
— Laptops com Windows Vista que travam alguns dias por mês.
Antes que o bug do milênio voltasse a atacar aquela mulher única, ele se levantou,
pagou a conta, pegou-a pela mão e foram caminhar. Andarilhos, companheiros de viagem e
aprendizes eram os dois, sempre.
Antonio Augusto