Vingança Literária
Era um casal que estava junto pelo acaso e por uma dessas combinações absurdas
de desejo de companhia e ganchos psicológicos. Ela, uma mulher sensível, doce, divertida, alegre como um final de Copa do Mundo, esfuziante como desfile de Carnaval. Ele, sério, metódico, flexível como um vergalhão de aço, bem-humorado como mulher em TPM, entusiasmado como um funcionário público de plantão.
Jorge e Lícia formavam um casal com a mesma desenvoltura de um besouro, que voa
apesar de aerodinamicamente ter tudo para não voar.
— Para, para esse conto que eu quero descer, sr. Autor.
— O que é, Jorge?
— Como você pode ser tão tendencioso?
— Em que aspecto?
— Como “em que aspecto”? Você me descreve de uma maneira muito diferente do que sou!
— Jorge, meu caro, eu sou o autor. Descrevo do jeito que eu quiser.
— E porque é autor pode ser arrogante e tendencioso?
— Posso ser arrogante, tendencioso, imperial e absoluto.
— Você realmente acredita que escrever é brincar de ser Deus?
— Não só acredito como exerço o papel.
— E acha que personagem é subpessoa? Que não tem sentimentos?
— Personagens têm sentimentos, obviamente, mas não preciso respeitá-los.
— Claro que precisa!
— Não preciso, não senhor. Em uma frase posso eliminá-lo da minha história.
— Absolutista, fascista e agora assassino?
— Posso ser essas coisas também. Torná-lo um neofantasma num piscar de olhos!
— Essa sua arrogância esconde desejos espúrios. Vocês, autores, sempre nos usam para realizar desejos e fantasias.
— Andou lendo psicanálise?
— Sua ironia é patética. O abuso de poder é mordaz e cruel. Mas, como personagem que sou, já deveria saber o que gente da sua laia é capaz de fazer. Dia desses conversava com o pobre do Bentinho, vítima daquele esquizofrênico, o tal do Machado.
— Agradeço pela honrosa comparação.
— A comparação não se deve ao texto — o dele era realmente bom —, mas às
maldades que são perpetradas por vocês, autores. Acho até que deveria haver uma SPP.
— SPP?
— Sim, Sociedade para Proteção dos Personagens. Até animais são protegidos, por que não nós, seres, quase pessoas, sei lá, transpessoas?
— Nunca pensei que fosse lidar com um personagem revoltado.
— Jamais serei um Bentinho ou um marido de Madame Bovary.
— Não acha que é muita pretensão sua?
— Não, acho que você é dissimulado.
— Essa conversa é descabida.
— Rapazes, o que está acontecendo?
— Lícia, esse autorzinho quer nos separar.
— Calma, Jorge, ele é tão simpático e…
— E o quê?
— Galanteador.
— A maneira como ele te descreveu diz tudo.
— Lícia, você tem certeza que esse sujeito é o melhor pra você?
— Viu? O lobo tirou a pele de cordeiro.
— Não sou lobo, sou autor. Criei vocês dois.
— E desde quando o criador é dono da criatura? O sujeito não é dono dos filhos por tê-los gerado.
— Vocês não são pessoas, não são filhos.
— Viu o que você fez? A Lícia está chorando.
— Mas ela não deveria chorar. Ela é alegre.
— Era alegre até você se intrometer, entrar em nosso universo e mostrar o que ela não era.
— Ela se sentia uma pessoa, logo, era uma pessoa. E você, o que fez? Disse para uma criança que Papai Noel não existe na véspera do Natal?
— Volte já para o conto, Jorge!
— Não volto.
— O que você está fazendo, que loucura é essa?
— Estou bebendo veneno e dando-o a Lícia.
— Não queremos mais viver a sua história.
— Você não pode fazer isso.
— Já fiz. Eis a minha vingança. Dois amantes, vítimas de um amor impossível, que se matam.
— E que vingança estúpida é essa?
— Vão te acusar de plágio.
Antonio Augusto
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