Sentado na poltrona naquela noite fria de inverno, Júlio ouvia a música que se tornara seu hino:
Quem anda atrás de amor e paz
Não anda bem
Porque na vida, quem quer paz
Amor não tem!
Aquelas palavras eram sabedoria em síntese. Durante anos cantarolava pra si mesmo toda vez que era tomado pelo impulso de se apaixonar. Bandeiras vermelhas, sinais de STOP, cercas eletrificadas e muros se materializavam em sua frente. Lembrava-se das dores de amores, dos fins antes do começos, dos seus tropeços, de quantas vezes até rezou, apesar de ateu.
Por maior que fosse a tentação e o desejo de mergulhar, parava, respirava fundo e deixava aquele sentimento tolo se perder no horizonte e seguia a vida.
Vida que seguia seu curso e absorvia toda sua energia, dedicada ao trabalho, à acumulação, às conquistas e a todo sentido que sua mente pudesse criar. Era verdade que aquela paz era estranhamente vazia, insossa, incolor mas era paz. Era tudo tão previsível e ao alcance da mão, sob controle, sem novidade e a rotina trazia sanidade.
Há algum tempo se percebia meio lobo solitário, anti social, avesso a reuniões e comemorações. Aquele jantar era especial todavia. Seu melhor amigo fazia 60 anos e seriam apenas 5 casais. Casais? Ele era só mas haviam arranjado uma companhia. A aquele jantar não seria possível faltar.
Chegou ao restaurante e foi levado à mesa para dez pessoas. O único lugar vazio era o seu. Sentou-se ao lado da advogada que deveria completar o par. Logo percebeu que ela gostava de falar, não de conversar. Como havia aprendido a ouvir e a fazer de conta que ouvia, observava e contava os minutos.
A conversa estava animada na mesa. O assunto era o acaso, a sorte como fator determinante. Várias estórias foram contadas e o filme Match Point de Woody Allen foi citado.
Havia um grupo - de homens e mulheres - que acreditava em destino, sorte, e em uma certa mão invisível que, de alguma forma, definiria o rumo de nossas vidas, ou a mudança de rumo. O outro grupo acreditava que fazemos nossa trilha. O mapa do caminho é o acúmulo das nossas decisões.Tudo muito racional e consequente.
Várias vezes durante a noite, olhara para o casal da mesa ao lado. Estavam em silêncio a maior parte do tempo. Telefones celular em punho, digitavam e se comunicavam sabe-se lá com quem, mas entre os dois, nem olhares!
Aquela cena lhe trouxe memórias tristes dos longos silêncios de solidão acompanhada, que havia vivido. O desconforto aumentou quando percebeu que a mulher limpava disfarçadamente uma lágrima. Ela mexia com ele de uma forma estranhamente familiar. Sabia que já havia se sentido assim e sentiu falta do que foi.
Ficou mais alguns minutos, abraçou carinhosamente o amigo aniversariante, se despediu e foi embora.
Entregou o ticket ao manobrista. O carro chegou. Driblando o sono e o cansaço, entrou no carro, reclamou da posição do banco que havia sido mudada e foi embora. Chegou em casa, caiu na cama e apagou.
Eram duas horas da manhã quando o telefone tocou:
- Sr. Júlio, perguntou uma voz feminina?
- Sim, sou eu.
- O senhor estava hoje à noite em um restaurante?
- Sim, estava.
- O senhor tem um Toyota Corola preto.
- Sim, tenho.
- Eu também. Os manobristas trocaram nossos carros.
- Como descobriram meu telefone?
- Estava numa ordem de serviço da concessionária, guardada no porta-luvas.
- Não podemos fazer a troca amanhã?
- Poderíamos mas a chave de casa está no chaveiro do carro.
- Seu nome?
- Isabel.
Júlio deu o endereço. Isabel chegou 20 minutos depois.
Para sua surpresa, era ela a mulher da mesa ao lado. Algo estranho aconteceu. Conversaram longamente. Tinham muito pra falar e havia a sensação de que já se conheciam.
Despediram-se e Júlio começou a pensar na conversa do jantar. Agora tinha porque acreditar no destino e abrir mão da paz que desfrutava.
Antonio Augusto