Amanhã completo cem anos! Repito para me convencer: cem anos, um século, trinta e seis mil e quinhentos dias, sem filhos, descendentes, poucos parentes, a maioria enterrei, assim como os raros amigos que tive.
Tanta vida, muitas histórias, fui testemunha de inúmeros eventos que estão em livros, de amores que viraram romances, de casamentos e pessoas que viraram cinzas, de encontros improváveis e de finais felizes também, mas finais.
A um certo cansaço, junta-se um cinismo inevitável. Deixei de acreditar no ser humano e de ouvir também. Talvez não os escute mais, por não crer nas palavras ressecadas pelo tempo, desidratadas de sua essência. Amor, amizade, lealdade, fidelidade, fé, religião, paixão, esperança, idealismo, solidariedade! Palavras e conceitos pregados com tamanha certeza que pareciam verdades absolutas. Parecer e ser se confundem na juventude e, feito óleo e água, não se misturam na velhice. Não os misturo nem confundo há muito tempo.
Os olhos cansados precisam de lentes para ler, mas os outros sentidos e a experiência compensam a debilitada visão, deixando tudo muito claro, às vezes demasiadamente cristalino!
O tempo se encarrega de reduzir expectativas, faz rarear as surpresas, mas não elimina a capacidade de descobrir o novo em um texto, uma imagem, uma cena, ou em música recém ouvida. A capacidade está sempre ali, latente, à espera e desejosa do encontro, mas cada vez mais paciente, até conformada. Talvez a paciência reflita o tamanho grau de exigência que demanda o prazer de um ancião.
Acredito que a velhice é uma longa estrada onde nos despedimos dos prazeres e vamos nos despindo do que achávamos que éramos. As camadas vão sendo retiradas (ou arrancadas) pelas vivências e o que fazemos delas.
Confesso que aprendi muito e me arrependo pouco. Arrependimentos são inevitáveis, porém necessários: revelam um pouco das frustrações pelos caminhos não escolhidos, pelas outras vidas que abrimos mão para viver essa que nos leva ao ponto final. Arrependimentos são apenas o desejo de reviver, viver novamente o que não aconteceu.
Tive mais decepções que amores, mais tristezas que alegrias, mais dúvidas que certezas, mais perguntas que respostas, mais sorte do que consegui aproveitar, mais dinheiro do que consegui gastar, mais tempo de vida do que imaginei um dia ter.
Mas estou ainda por aqui, prestes a completar esse século de vida. Há tempos acho que a missão está cumprida, que não há mais o que fazer, mas o Criador insiste em divergir e vai me creditando dias quando mal consigo gastá-los.
No fundo, no fundo, acredito ser uma injustiça, entretanto não reclamo. O senso de humor é um eterno companheiro e, sorrir, um remédio. Resta-me sorrir ao encarar o ano de dois mil e dezessete e os absurdos que viram realidade diariamente, relegando a ficção a um espaço cada vez menor. Se fosse escritor, poderia passar melhor o tempo narrando as histórias que leio nos jornais diariamente, comentando, despudoradamente, sem filtros, como pode um velho fazer.
Mas não escrevo; apenas penso e registro na memória que parece cada vez mais curta e seletiva.
Nostalgia nunca tive. Vivi intensamente tudo que consegui viver e as emoções ficaram no seu lugar, nas estantes do passado, com exceção da saudade que ainda trago comigo da única mulher que amei de verdade. Aqueles sessenta dias foram os melhores desse século, valeram por todos os outros e confesso que a esperança de reencontrá-la de alguma forma, ainda me mantém vivo.
Ao pensar nela me encho de contradições, mas encontro o sentido de toda uma vida, não importa o número de anos: amar, amar de verdade e profundamente.
Antonio Augusto